Com Photoshop ou não

Em 1826, o francês Joseph Nicéphore Niépce registrou uma imagem de seu quintal usando uma placa de estanho, betume e uma câmara escura. Depois de oito horas de exposição à luz, nascia a fotografia. Desde então, vimos o mundo através de fotos: os horrores das guerras, os lugares exóticos recém-desbravados, os grandes líderes, os mais belos homens e mulheres e mesmo o planeta Terra visto do espaço. Hoje, quase dois séculos depois, o povo que inventou essa técnica volta a refletir sobre os rumos tomados pela arte de transformar coisas em imagens. Tramita no Congresso francês uma proposta de lei da deputada Valérie Boyer que pretende regulamentar o uso do Photoshop em imagens publicitárias, editoriais e artísticas. Segundo a deputada, toda foto publicada na França minimamente alterada por um programa de computador que retoque imagens deverá vir acompanhada do seguinte aviso: "Esta fotografia foi retocada para modificar a aparência física de uma pessoa". A multa para quem não o colocar será de 37.500 euros, ou 95.500 reais. A proposta já conta com a adesão de outros cinquenta parlamentares franceses.

Como fazemos com um filho rebelde que fugiu do nosso controle, os franceses querem devolver à fotografia o seu valor fundamental: a fidelidade – apesar de utópica – da representação fotográfica. Em campanhas publicitárias e certos nichos glamourosos da imprensa de moda, existem hoje dois processos distintos na elaboração das imagens: fotografar e photoshopar (sim, já virou verbo). O primeiro capta as imagens com a melhor luz possível. O segundo pode construir corpos magérrimos e perfeitos, peles de plástico, livres de celulite ou qualquer outra imperfeição natural. O resultado é, em casos extremos, uma ilustração que tem pouquíssimo a ver com o original. Da perseguição dessa beleza inatingível podem provir sérios danos à autoestima, sobretudo em adolescentes, quando não transtornos como a bulimia e a compulsão por cirurgias plásticas. Do outro lado do Canal da Mancha, parlamentares ingleses também propõem restrições ao uso do Photoshop em campanhas publicitárias voltadas para menores de 16 anos. A fundamentação é que fotografias manipuladas podem fazer mal à saúde.

A possibilidade de manipulação da fotografia existe desde a invenção da câmara escura. No século XIX, os retratos encomendados passaram a ganhar correções feitas com a ajuda de retocadores, que com pincéis e tinta procuravam melhorar a aparência dos fotografados. O mito de que a fotografia é a representação da realidade foi usado de forma maquiavélica por ditadores, como Stalin, Hitler, Mao Tsé-tung e Mussolini, que tentaram reescrever a história por meio da alteração criminosa de fotografias. Hoje, a manipulação da imagem encontrou possibilidades infinitas com a fotografia digital. Sexagenárias posam para capas de revista com pele e corpo de adolescente – mas sem espinhas, é claro. Até lipoaspirações digitais, como a feita pela revista francesa Paris Match com o presidente Nicolas Sarkozy, são possíveis. A questão proposta pelos legisladores franceses é separar o joio do trigo. "Quando escritores partem de evento real mas o embelezam, eles são obrigados a avisar seus leitores de que se trata de uma ficção ou de uma dramatização baseada em fatos reais. Por que com a fotografia deveria ser diferente?", pergunta a deputada Boyer. Por enquanto, podemos tudo. Nós definimos o limite. Como nos anúncios de bebida alcoólica, a resposta está na quantidade: "Photoshop, use com moderação". Essa parece ser a receita possível para não transformar todas as fotografias em ilustrações.